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quinta-feira, janeiro 13, 2011

Quando os médicos erram/ Parte 1

O número de processos aumentousete vezes em apenas uma década


Alexandre Mansur

Na sala de cirurgia, o médico Pedro Paulo Monteleone prepara-se para retirar o útero de Rosa Gonçalves Dias. Às 7 horas da manhã, a paciente teve o intestino lavado e os pêlos pubianos raspados. A anestesia peridural, que corta qualquer sensibilidade da cintura para baixo, faz efeito. Como Rosa tivera seus três filhos por meio de cesariana, Monteleone abre 12 centímetros de pele logo acima do púbis, no mesmo local dos cortes anteriores, para evitar uma nova cicatriz. É trabalhoso chegar até o útero. O médico corta uma primeira camada de gordura, abre a aponeurose, um tecido fino que envolve toda a cavidade abdominal, afasta os músculos peritoniais e alcança o intestino. A cada etapa, grampos metálicos são colocados nas bordas das incisões para manter os órgãos afastados. O intestino é empurrado, com uma compressa, em direção ao umbigo. Em meia hora, o médico já enxerga bem o útero da paciente. A fase mais crítica da cirurgia começa agora. Com todo o cuidado, Monteleone corta os ligamentos que unem as trompas ao útero. Quando a paciente está deitada, a bexiga fica apoiada sobre o útero. É preciso afastá-la com uma gaze, lentamente, e ir cortando com uma pequena tesoura os pedaços de tecido que unem as finas paredes dos dois órgãos. É como abrir um envelope, descolando as bordas, sem rasgar o papel. Monteleone sabe que qualquer corte 1 milímetro mais profundo pode perfurar a bexiga. Foi exatamente isso que aconteceu naquela manhã de agosto de 1994. O médico Monteleone furou a bexiga de sua paciente Rosa.




Monteleone, 58 anos, obstetra e ginecologista há 33, é formado em uma das melhores faculdades do país, a Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, onde também foi professor durante três décadas. Naquela manhã, ao perceber que tinha cortado a bexiga de Rosa, parou o que estava fazendo. Pediu fio e agulha apropriados à instrumentadora, costurou o órgão afetado com cinco pontos e só depois prosseguiu na retirada do útero. Duas horas mais tarde, quando a paciente já estava no quarto, ainda levemente sedada, o médico explicou-lhe o que ocorrera durante a operação. Se não fosse pelo rompimento da bexiga, Rosa teria alta do hospital em menos de 24 horas. Em razão do acidente, ela ficou com uma sonda e a internação foi prolongada por uma semana, até a ferida interna cicatrizar. Hoje, acadêmico renomado e profissional de sucesso, Monteleone preside o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, Cremesp. Por sua mesa, na sede da entidade, passam quilos de papéis repletos de acusações graves contra seus colegas de profissão. São casos de erro médico. Em uma década, o número de processos por negligência ou imperícia encaminhados anualmente ao Conselho Federal de Medicina, CFM, a última instância por onde passam processos vindos de todo o Brasil, aumentou sete vezes. Ao todo, foram 356 processos (veja gráfico). O número de condenados caiu porque o Conselho diz que não consegue julgar tantos casos. Há 200 na fila de espera.



Uma novidade é que o comportamento dos médicos em relação aos seus próprios erros está mudando. Até algum tempo atrás, com medo de sofrer processos e ter a reputação manchada por uma acusação de barbeiragem, grande parte deles preferia esconder dos pacientes suas eventuais falhas. Isso só contribuía para complicar a questão. Desinformados a respeito de problemas durante a cirurgia, muitos pacientes só descobriam que tinham sido vítimas de erro mais tarde, em razão de complicações pós-operatórias. Os próprios conselhos regionais de medicina eram usados como escudo para proteger os médicos acusados de erro, o que freqüentemente lhes valeu a pejorativa denominação de "máfia de branco". Hoje, isso ainda acontece, mas há boas notícias na área. Tome-se o caso do erro cometido por Monteleone durante a cirurgia de útero. Depois de ouvir o relato detalhado do que tinha ocorrido, Rosa, sua paciente, nem pensou em processar o cirurgião. "É um alívio saber que existem médicos que contam a verdade, por mais difícil que seja ouvi-la", diz ela. Esse tipo de relacionamento franco entre médico e paciente é uma grande novidade nos consultórios e hospitais brasileiros.
Histórias escabrosas — Para a maioria das pessoas, erro médico é sinônimo de negligência ou irresponsabilidade de maus profissionais. Inúmeras histórias escabrosas que aparecem no noticiário contribuem para reforçar essa visão (veja algumas delas nos quadros que ilustram esta reportagem). Um recém-nascido ficou cego porque esqueceram de colocar algodão para proteger seus olhos na incubadeira. Uma mulher submeteu-se a uma cirurgia no abdome e, cinco anos depois, começou a sentir dores. Ao fazer uma radiografia, foi informada de que tinha uma pinça cirúrgica na barriga, deixada ali pelo médico que a operou. Uma judoca de 14 anos foi internada para operar o menisco da perna direita. Quando acordou, descobriu que tinham mexido no menisco sadio da perna esquerda. A maioria desses casos, mais escandalosos, envolve médicos incompetentes e negligentes. Existe, porém, uma verdade irrefutável na medicina, que torna o problema do erro mais complexo e, ao mesmo tempo, mais assustador: todos os médicos erram. "Quem diz que nunca cometeu um erro grave na carreira está mentindo", afirma, sem constrangimento, o obstetra Monteleone. "Alguns erros, às vezes graves, fazem parte do dia-a-dia da medicina", diz Sérgio Mies, professor e médico da Unidade de Fígado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. "Mesmo os melhores médicos estão sujeitos a errar."




Foto:3 "Quem diz que nunca cometeu um erro grave na carreira está mentindo."Pedro Paulo Monteleone, ginecologista e obstetra que furou a bexiga de uma paciente durante cirurgia./De:Antonio Milena

Com reportagem de Dina Duarte, do Recife, José Edward,de Belo Horizonte, e Cristine Prestes, de Porto Alegre

Fonte:http://veja.abril.com.br/030399/p_080.html