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sexta-feira, janeiro 14, 2011

Quando os médicos erram/Parte 2

Alexandre Mansur



Pelas estatísticas, percebe-se que o grande desafio da medicina não é punir profissionais negligentes que cometem erros. Isso, bem ou mal, a Justiça e os conselhos regionais já fazem. O verdadeiro desafio é encontrar um modo de evitar que os bons médicos, aqueles profissionais sérios e competentes em que os pacientes confiam cegamente, cometam falhas. Em 1991, a revista New England Journal of Medicine, uma das mais conceituadas do mundo na área, publicou um estudo feito nos hospitais do Estado de Nova York, nos Estados Unidos. A pesquisa, com base em análise de 30.000 prontuários, revelou que dois terços das complicações que resultaram em internação prolongada, incapacidade ou morte foram provocados por erros médicos. Os americanos estimam que 120.000 pacientes morrem a cada ano em conseqüência de algum engano ou descuido no tratamento. Quatro entre dez médicos americanos já foram acusados e processados por erros cometidos em consultórios e hospitais. No Brasil, as associações de vítimas de erros médicos do Rio de Janeiro e de São Paulo têm 3100 processos correndo na Justiça. Os médicos envolvidos nesses processos têm, em média, entre dez e vinte anos de profissão.




Livre-arbítrio — Por que os médicos erram com tanta freqüência? Porque são pessoas. Errar é parte essencial da existência humana. Segundo o psicólogo inglês James Reason, autor do livro Erro Humano, o erro é o preço que os seres humanos pagam pela habilidade de pensar e agir intuitivamente. É a possibilidade de errar, ou acertar, que faz da espécie humana a única dotada de livre-arbítrio, a capacidade de escolher entre idéias, caminhos, soluções e alternativas diferentes. É também esse mecanismo que faz as pessoas melhorarem com o aprendizado e o acúmulo de novas experiências. Sem a perspectiva do erro, seríamos todos exatamente iguais, homens e mulheres aborrecidamente infalíveis e previsíveis.




Existem áreas em que a tecnologia tem conseguido reduzir o erro à condição de uma quase improbabilidade estatística. Na indústria da aviação, a freqüência de erros operacionais é hoje de apenas um a cada 100.000 vôos. Isso é possível porque, na aviação, um homem comanda uma máquina que pode ser ajustada nos mínimos detalhes para reagir corretamente a milhares de situações já bastante estudadas. A indústria de eletrodomésticos General Electric atingiu a meta de tornar os defeitos em produtos tão raros que já não podem ser estatisticamente detectados — estima-se que a proporção seja de um erro por milhão de acertos. Em outras atividades, em que as decisões são tomadas por pessoas cujos procedimentos não podem ser regulados e ajustados, como os dos robôs, a situação é diferente. Os engenheiros erram. Os professores erram. Os advogados erram. Os jornalistas erram — esta sua revista VEJA já errou muitas vezes e, provavelmente, vai errar outras tantas mais. Na medicina, em que gente cuida de gente e lida com situações muitas vezes imprevisíveis, o erro é parte da rotina. O problema é que o médico lida com a vida humana. Isso torna seu erro mais dramático.




Existe, no entanto, o profissional que erra e procede corretamente depois e o médico que erra e se mantém teimosamente no erro. No primeiro caso estão médicos que falham mas assumem os deslizes e os expõem francamente aos pacientes. No segundo, os que erram por negligência ou falta de humildade para reconhecer que não estão preparados para fazer determinadas cirurgias ou tratamentos. E, pior: procuram esconder os erros com atitudes desonestas em relação aos pacientes. A maior parte das denúncias de erro médico que se avolumam nos conselhos regionais e nos tribunais de Justiça tem uma história de mau relacionamento entre médico e paciente agravando a questão do erro. Muitos processos poderiam ser evitados com um diálogo franco e a continuidade do tratamento. Sabendo disso, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro criou, no mês passado, uma Comissão de Conciliação. Antes de dar entrada com a denúncia, a comissão coloca o paciente frente a frente com o médico. O profissional é obrigado a explicar, em linguagem didática, o que houve durante determinada cirurgia ou tratamento. Nos casos mais simples, os pacientes contentam-se com um pedido formal de desculpas por parte do médico. Nos outros, mais complicados, é aberto um processo no CRM.




Exemplos semelhantes podem ser encontrados em outros Estados. Em Santa Catarina, o cirurgião Edevard de Araujo abriu um buraco maior que o esperado na bexiga de uma menina durante uma cirurgia para desobstrução de um ureter. Dois dias depois, os pontos da bexiga estouraram e a urina passou a vazar para dentro do abdome. O outro canal do ureter que não tinha sido mexido também piorou. Ao contar aos pais da paciente que teria de fazer outra operação, dessa vez de emergência, foi bem claro: "Foi uma complicação imprevisível". Os pais acreditaram e nem pensaram em processá-lo.
Outro caso exemplar de que uma conversa honesta é o melhor caminho para evitar um processo ocorreu com o pediatra carioca Marcos Vianna, da Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro. Em 1989, Vianna atendeu uma mulher cujo filho, de 1 ano e 7 meses, tinha febre e chorava de dor no ouvido. Ao examinar o menino, o médico constatou que o tímpano estava abaulado e opaco. Diagnóstico: otite. Receitou um remédio e mandou a criança para casa. O diagnóstico estava errado. Algumas horas depois, a febre piorou, o choro aumentou e a mãe, aflita, levou o filho para outro hospital, que, dessa vez, fez um exame mais detalhado. Com uma punção, retirou-se líquido da medula espinhal. O diagnóstico foi meningite. As probabilidades de um paciente com meningite morrer ou ficar com seqüelas como paralisias e deficiências cerebrais quando não é medicado em 24 horas são enormes. Felizmente, nesse caso o menino foi socorrido a tempo e hoje leva uma vida normal. Ao saber do que tinha acontecido, o pediatra Vianna reconheceu imediatamente o erro. "O menino poderia ter morrido", afirma. Sua franqueza fez com que a família decidisse manter o menino aos seus cuidados, mesmo depois do episódio. "Qualquer profissional pode cometer erro de diagnóstico", diz o médico. "O importante é não abandonar o paciente."
No Brasil, o que contribui para o erro e a negligência são a má formação dos médicos e as condições de trabalho na maioria dos hospitais. Dos 9.000 profissionais formados todo ano pelas 85 escolas de medicina do país, apenas 60% conseguem vaga para fazer residência. "Mesmo quem se formou na melhor faculdade de medicina do Brasil não está pronto para trabalhar sem dois anos de residência", afirma Júlio Cézar Gomes, secretário do CFM. "Esses 40% que chegam ao mercado de trabalho sem a formação completa são um perigo." Outro problema são as precárias instalações dos postos de atendimento. "Em hospitais muito grandes, a situação força uma banalização da morte", diz o professor Sérgio Mies. "Isso leva à negligência. É essencial que um médico nunca encare a morte como algo banal." Além das más condições de trabalho, a certeza da impunidade é outro fator que favorece os erros. Nos hospitais públicos, quando o médico erra, geralmente o processo corre contra a União, o Estado ou o município. Em raríssimos casos, acusa-se diretamente o profissional que cometeu a falha. Essas entidades públicas, e impessoais, pagam as indenizações, quando são condenadas, mas quase nunca se preocupam em punir os responsáveis pelo erro. "Ninguém fica sabendo nem mesmo quem é o médico envolvido", diz Marcos Vianna. Durante os quatro anos em que ele dirigiu o Instituto Fernandes Figueira, no Rio de Janeiro, maternidade de referência nacional, o hospital pagou quatro indenizações por erros cometidos por médicos que nem trabalhavam mais lá. Várias vezes Marcos Vianna tentou abrir sindicância interna para apurar os erros, mas foi em vão. "Convocamos comissões de médicos especialistas, mas o corporativismo correu solto", queixa-se Vianna. "Ninguém queria ouvir falar em negligência."
O aumento do número de processos contra médicos no Brasil deve-se a uma mudança de comportamento da sociedade. Até alguns anos atrás, os médicos eram vistos como profissionais em quem se devia depositar uma confiança cega, o que os tornava praticamente imunes à acusação de erro. Isso está mudando, graças à consciência dos pacientes de que eles são prestadores de serviços, dos quais se devem cobrar qualidade e respeito, como em qualquer outra área. Há dez anos, a maior parte das denúncias de erro partia da própria classe médica. Hoje, 57% das queixas são feitas pelos pacientes e órgãos de defesa do consumidor. Preocupados com a imagem da classe, os médicos, por meio dos conselhos regionais, estão mais empenhados em punir os maus profissionais. "Precisamos aprimorar nossa credibilidade", diz Roberto D'Ávila, presidente do CRM de Santa Catarina.
Licença cassada — No final do ano passado, um ginecologista de São Paulo teve sua licença de exercício da profissão cassada porque rompeu o ureter e a bexiga de uma garota de 20 anos durante um aborto. No dia seguinte, com fortes dores, a paciente procurou o médico, mas ele se negou a atendê-la. A jovem foi parar em outro hospital e perdeu o útero em virtude das complicações da operação malfeita. O conselho regional considerou mais grave o fato de o médico ter negligenciado a paciente do que ter feito um procedimento ilegal (o aborto) e rompido dois órgãos. "É um indivíduo sem caráter, que não admite que errou nem tem a sensibilidade para ver as conseqüências do erro", avalia Monteleone. "Esse tipo de gente não pode exercer a profissão."
Quando é julgado culpado por um CRM, um médico pode receber uma advertência reservada, uma censura pública, uma suspensão por trinta dias. Nos casos mais graves, tem o registro profissional cassado. Nos processos que chegam à Justiça comum, as vítimas buscam indenizações em dinheiro e, em tese, as chances de o médico ser punido são maiores. A primeira vitória na Justiça comum de uma associação de vítimas de erro médico aconteceu em 1992. "Na época foi um evento sem precedentes", lembra a advogada Célia Destri, presidente da associação fluminense de vítimas de erro médico. Desde então, outros 62 processos foram vencidos pelos pacientes. Em geral, as indenizações determinadas pela Justiça são superiores a 100 salários mínimos. Os médicos brasileiros estão apreensivos com a chance de ter seus procedimentos discutidos em tribunal e começam a pensar numa "medicina defensiva". A Associação Médica do Rio Grande do Sul elaborou um manual para seus sócios se precaverem de processos por erro médico, com orientações que chocaram alguns especialistas no assunto (
veja quadro). Também há companhias de seguro oferecendo planos especiais de cobertura para os médicos. Uma delas, a Arias Villanueva, já tem 400 clientes. O segurado paga 158 reais por mês e, se for processado, tem direito a 130.000 reais para pagar indenizações e honorários do advogado.
Nos Estados Unidos, o medo de processos judiciais tornou-se uma autêntica paranóia entre os médicos. Setenta por cento dos ginecologistas e obstetras americanos — área mais visada — já foram processados pelo menos uma vez. Há casos de profissionais que foram condenados a pagar milhões de dólares em indenizações. Essa indústria de processos tornou-se um filão para as seguradoras. Todo médico ou hospital tem seu plano de seguro para se prevenir contra a falência no caso de ser condenado a pagar uma indenização milionária. "Lá, o medo de processos é tão generalizado que ninguém cria nem improvisa nada", afirma o médico mineiro Randas Vilela Batista, que se tornou mundialmente famoso por inventar uma cirurgia que retira um naco do músculo cardíaco para curar determinadas doenças. "Nos Estados Unidos, ninguém teria coragem de fazer uma cirurgia como essa pela primeira vez", conta Randas. "O risco de sofrer um processo, caso algo saísse errado, seria grande demais."
Apesar da paranóia, os Estados Unidos conseguiram reduzir a incidência de erros em determinadas áreas da medicina, como a anestesia. Esse é um caso espetacular de sucesso. No início da década de 80, uma a cada 10000 anestesias feitas nos hospitais americanos tinha algum problema que resultava em morte. O presidente da Sociedade Americana de Anestesiologistas, Ellison Pierce, decidiu lançar uma cruzada para reduzir as chances de erro. Pierce usou um trabalho realizado dez anos antes pelo engenheiro Jeffrey Cooper, contratado pelo Hospital Geral de Massachusetts para estudar as causas dos problemas durante a anestesia. Cooper analisou 359 casos de erros, que incluíam pouco treinamento dos profissionais, deficiência dos equipamentos, má comunicação entre os membros da equipe cirúrgica, cansaço e desatenção. As alterações determinadas por Pierce foram, em geral, fáceis de executar. Reduziram-se as horas de trabalho, os mostradores dos equipamentos foram padronizados, sistemas de alarme passaram a ser acionados automaticamente em situações de risco, trancas de segurança para evitar excesso de gás anestésico foram instaladas. Uma década depois, o índice de mortalidade caiu para uma em mais de 200000 operações, redução de 95%.
Com os resultados obtidos na anestesiologia, fica claro que, apesar das limitações impostas pela condição humana, a medicina ainda pode melhorar muito no combate a seus erros. A busca da perfeição, ainda que inatingível, é a única saída compatível com a ética médica nesses casos. Colocar a culpa nas péssimas condições do sistema de saúde brasileiro, na formação deficiente dos profissionais, no excesso de horas trabalhadas, no baixo salário ou na falta de equipamento adequado é fugir da essência do problema. Em alguns hospitais universitários e poucas clínicas particulares, acontecem reuniões semanais em que médicos, enfermeiras, residentes, psicólogos, fisioterapeutas, todos os envolvidos em cada departamento, discutem os casos complicados. Na unidade de fígado do Hospital das Clínicas de São Paulo, as reuniões têm o nome de "complicações e óbitos". "Discutimos abertamente tudo o que acontece, principalmente os erros. O objetivo é aprender com o insucesso e tentar evitar a repetição", explica o médico e professor Sérgio Mies. Discussões dessa natureza são a melhor notícia que se poderia dar aos pacientes. "Não é razoável exigir que a medicina atinja a perfeição", afirma o médico americano Atul Gawande, autor de um artigo sobre erro médico publicado no mês passado pela revista The New Yorker. "O que é razoável é pedir que a medicina nunca deixe de buscá-la."


Foto 2:"O erro de avaliação acontece. O importante é não abandonar o paciente."Marcos Vianna, pediatra que diagnosticou otite em um caso de meningite./De: Oscar Cabral
Com reportagem de Dina Duarte, do Recife, José Edward,de Belo Horizonte, e Cristine Prestes, de Porto Alegre
Fonte:http://veja.abril.com.br/030399/p_080.html